A negação de si como essência da perfeita vontade na perspectiva do primeiro e do segundo Adão

13/09/2013 15:08

A NEGAÇÃO DE SI COMO ESSÊNCIA DA PERFEITA VONTADE NA PERSPECTIVA DO PRIMEIRO E DO SEGUNDO ADÃO

Marister Magalhães Frota Prado

 

A gênese da vontade está em Deus. Essa volição é claramente expressa na narrativa da criação. A vida cósmica veio a existir por sua vontade1, a vida animal e vegetal2  e a vida humana também3.

Nesta narrativa vemos a livre vontade divina expressa na palavra “haja” com exceção da vontade manifestada no ato da criação do homem. E não

(Photo Credit: English106 Flickr.com)

entendendo nada do hebraico arrisco afirmar que o imperativo verbal “haja” bem poderia ser interpretado ou entendido pela palavra “quero”. Na criação cósmica, vegetal e animal a vontade é uma ordem, na criação do homem a vontade é expressa como um labor artístico, provindo de um acordo triuno – façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Com suas próprias mãos4

É curioso notar que a vontade de Deus quando levada ao termo do querer, do ter ou vislumbrar o realizado como o substrato de si, ela é tida como “Boa”. A Bíblia diz categoricamente: e viu Deus tudo quando tinha feito, e eis que tudo era muito bom5, pois na sua vontade há bondade, agradabilidade e perfeição6·.

Com a criação do homem, imagem e semelhança de Si, Deus expressa sua vontade “querendo” que o homem domine a sua criação7; depois esse mesmo querer é demonstrado na criação da mulher – não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma auxiliadora que lhe seja idônea8.

No capítulo dois de gênesis não há registros de que o homem e a mulher tenham expressado sua vontade criativa, embora possamos tecer meras especulações, pois pelo relato bíblico podemos deduzir: Deus lhes deu a ordem para cultivar e guardar o jardim do Éden e dominar a criação9.

Posso imaginar o homem observando o desenvolvimento cíclico na natureza através da presença influenciadora do sol durante o dia e a lua à noite. Imagino-o observando o crescimento espontâneo dos frutos e seu processo de amadurecimento até o meio de prover para si mesmo suprimento alimentar. Imagino também que ele tenha tido a capacidade de armazenar comida para si, e por aí vai. Com certeza em todo esse processo do seu agir, Adão tenha usado o dispositivo da mera “vontade” que até ali estava ligada ao plano da subordinação ao imperativo divino: cultive, guarde e domine.

O Adão criado na semelhança de Deus ao cultivar e guarda o jardim expressa através do seu agir uma vontade, um desejo, mas esse desejo está para o outro que é Deus e não para si. Esta vontade é identificada como obediência.

A vontade que se expressa na obediência não se questiona, não se pergunta, mas se contenta apenas em fazer o que é requerido; parece-me que a razão humana apenas se inclina a acatar e pronto. É uma vontade depurada de interesse pessoal e quando executada pelo homem e uma mulher lhes asseguram prazer e bem estar, pois constatamos isso na harmonia dentro de si e fora de si. Havia uma plena harmonia nas relações: homem com Deus, homem com o próximo (sua companheira), do homem com a natureza e dele para consigo mesmo.

Já a vontade descrita no capítulo três de Gênesis, o contexto da queda, ela traz o despertar sensitivo como seu tempero. Está intrinsecamente ligada a uma necessidade que emerge do interior humano. Embora o suprimento das necessidades fisiológicas tenha sido assegurado por Deus na afirmativa de toda árvore do jardim comerás livremente10, porém ficou estabelecido por Ele mesmo um limite: da árvore do conhecimento do bem e do mal, não comerás11.

Essa segunda vontade pode ser identificada como desejo. Mas, o que me inquieta nesta vontade é saber que ela sai do interior do homem, se apresenta como mera necessidade sensitiva e/ou fisiológica requer para si algo de concreto, tangível e palpável pelo despertar das sensações.

Eva foi despertada pela serpente enganadora que lhe estimulou os sentidos. Primeiro, ela vê, depois tem a ideia enganosa de que o proposto satânico é bom - é agradável e desejável e no final do estímulo essa vontade se apresenta como desejo de ser igual a Deus12. A vontade aqui se apresenta como pretensão ambiciosa e invejosa. Nessa vontade há o componente da intencionalidade enquanto na primeira essa vontade é submissa, serva, desinteressada e depurada do sensorial. Os resultados dessa vontade é o oposto da primeira. O homem agora está separado de Deus, desentendido com sua mulher, enfrentando conflitos internos, dores13 e tudo na natureza está em desequilíbrio; desde aquele momento ela lhe é agressiva; a natureza começou a produzir cardos e abrolhos14. Poder-se-ia afirmar seguramente aqui, a origem de todo desequilíbrio do nosso eco sistema.

Não tenho a pretensão de achar que o lado sensitivo do homem é mal em si e nem quero me enveredar por esse caminho até porque os filósofos do passado como Aristóteles já discorreram bastante sobre o tema, sem contar com as duas escolas ainda vigorantes no período neotestamentário dos epicureus e dos estoicos15 se digladiaram muito discorrendo sobre o assunto. Mas, afirmo que Deus abençoou o homem com a virtude da vontade e da percepção sensitiva.

Caídos agora, homem e mulher passam a expressar essa vontade completamente contaminada pelo pecado. Antes da queda até se podia afirmar que havia uma vontade perfeita, livre para fazer só o que era bom. Essa vontade era obediente ao comando do criador, atendê-la implicava em um dever. Mas, por causa do pecado o homem tornou-se escravo de si mesmo, dos seus instintos. Ele mesmo se maniatou; sua intencionalidade o reduziu a um morto vivo completamente controlado pelo que vê, sente e ao que lhe proporciona prazer sensorial. Isso é egoísmo, é ser cheio de si, é ser ganancioso é querer ser grande, é desejar ter poder.

Seguindo as narrativas bíblicas observamos que os descendentes de Adão não têm mais a capacidade que anteriormente somente Adão possuía a de escolher o que é bom pelo simples dever de obedecer. Foi assim com Caim, ele não dominou seu desejo16. No episódio da torre de Babel17 a vontade de erguer o edifício foi marcada pelo desejo da notoriedade, fama e celebridade.

Ló quando se separou de Abraão porque os pastores de ambos se desentendiam por causa do pasto18, resolveu em seu coração ir para a campina do Jordão pelo único motivo: “viu toda a campina do Jordão, que era toda bem regada” 19. Ocorreu aqui novamente uma vontade contaminada pelo interesse pessoal, a ganância lhe açulou os sentidos. As consequências foram desastrosas – Sodoma e Gomorra destruídas e Ló teve que sair à força sendo tomado pelo braço do anjo20.

E os relatos bíblicos não ficam apenas neste caso, seguem-se outros mais e sempre observamos que a inclinação humana não é mais pelo simples dever de obedecer a Palavra de Deus. Todos os homens pecaram e agora destituídos estão da glória de Deus21.

O que dizer de uma nação cujo caminhar de seu povo é ficar ao sabor da conduta de cada um fazer o que bem entender ser melhor para si? Era assim o modo de viver do povo de Israel no período posterior a Josué, chamado de o período dos juízes. Segundo a Bíblia “naqueles dias, não havia rei em Israel; cada um fazia o que achava mais reto.” 22.

Davi, o mavioso salmista de Israel23, também caiu neste pecado ao desejar realizar o censo24, pois neste ato estava a confiança em si mesmo e no seu exército. A palavra de Deus afirma que “maldito é o homem que faz da carne mortal o seu braço e aparta o seu coração do Senhor.” 25 Davi demonstra neste ato sua arrogância, sua confiança no seu poderio bélico e não mais na dependência de Deus, porém nele mesmo.

A vontade quando levada as últimas consequências do impulso carnal do homem ela traz em si os seguintes motivações: concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida26. Foi isto que veio a imperar no homem, agora caído por causa do pecado. O homem passa a ser tentado naquilo que cobiça, por isso há algo que o atrai, o engoda pela sua própria concupiscência, esta concebe o pecado e este pecado uma vez consumado, gerando a morte. 27

De geração em geração a humanidade caminha angustiosa com a presença do mal no mundo nas várias formas de apresentação: físico, moral e espiritual; este homem é inventor dos males28, buscando valores que lhe confira autonomia, mas em vão, desgraçadamente, pois isso é uma miragem; o mal é a sequela de uma vontade sem freio. Agora o homem vai conviver com o drama profundo da desventurança de querer o bem e não praticá-lo, odiar o mal e não abandoná-lo29.

Deus não podia deixar a criação a mercê deste mal horrendo que foi introduzido no mundo. Ali mesmo no Éden já apresentou a promessa da vinda do salvador30. Muitas gerações foram se passando e Deus tendo o cuidado de sinalizar seu plano salvador ao homem. Ele usou muitas linguagens para que o homem entendesse que seu plano era de amor31, portanto ele providenciou laços e coradas de amor para atrair o homem a si 32.

Deus usou sinais e prodígios para a humanidade entender que o salvador seria verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus. Deus se revelou nas teofanias33, nas tipologias humanas (Abel, Moisés, José) e não humanas (cordeiro pascal, tabernáculo, etc.), através dos profetas, mas falou plenamente em de seu filho. 34

Deus envia seu filho ao mundo na plenitude dos tempos35. É na pessoa de Jesus que Deus estabelece uma nova raça, um novo padrão a ser seguido. Ele é chamado de o segundo Adão36. O primeiro homem era da terra, chamado de terreno, alma vivente, mas Jesus o segundo Adão é do céu e, portanto chamado de espírito vivificante, celestial 37.

A encarnação de Jesus o tornou por um pouco menor que Deus38, todavia nele mesmo habitou a plenitude da divindade39, nem por isso Jesus teve como usurpação ser igual a Deus40. Aqui vemos claramente que Jesus homem, recusou plenamente aquilo que Adão abraçou por ambição – “Ser igual a Deus”. Jesus foi tentado em tudo, contudo não pecou. 41

Jesus teve diante de si o que a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e o que a soberba da vida podia dar ao homem quando diante de satanás teve seus sentidos aguçados em tão grande provocação pecaminosa.42 Ele tudo rejeitou pela supremacia da sua vocação, salvar a humanidade perdida.

Toda a vida de Jesus foi marcada por suas palavras que afirmavam categoricamente que sua vontade consistia em fazer a vontade de Deus. 43 Havia uma determinação em si, não mais para si, mas, para além de si - obedecer tão somente a palavra de Deus o Pai. Jesus, o segundo Adão renunciou a “si mesmo” e viu na sua renuncia o bem estar do outro que consistia em oferecer humanidade perdida a salvação e a resposta para inquietação conflituosa entre o mal e o bem que se processa no interior da alma humana.

Jesus pode pela vontade dominar os sentidos, por isso Ele é o mais puro e santo dentre os homens e vitorioso no cumprimento a vontade do Pai. A negação de si é a perfeita vontade. Toda vez que alguém renuncia algo em favor do outro em obediência a palavra de Deus, haverá sempre a expressão “tudo isso é bom”. Posso imaginar o prazer que a obediência de Jesus dava a Deus o Pai, por isso dos céus seu ouviu a perfeita declaração: este é meu filho amado, em quem me comprazo. 44

A palavra de Deus como a bússola a nortear a ação humana revela que o cristianismo é essencialmente renuncia, pois quem aceitando Jesus, O Cristo como salvador deverá praticar as suas palavras se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo. 45 Jesus no Sermão do Monte ensinou tais verdades que implicam em renunciar como o deixar a túnica, largar a capa, dar a outra face, andar a segunda milha e amar os inimigos, viver bendizente e orar pelos que nos maltratam. 46

Notemos que ao fazermos isso seremos identificados como “filhos de Deus” 47. Podemos observar também nas Bem-Aventuranças que numa paradoxal exposição de vida feliz mostra que a felicidade está na negatividade daquilo que o viver normalmente apresenta como sendo “ser feliz”. A felicidade está na pobreza de espírito, no choro, na injuria, na fome, na perseguição. 48

Ora, certamente quem age assim deve ter um domínio de si, da sua natureza pecaminosa. Não é fácil, como também para Jesus não o foi, pois as Escrituras afirmam que Ele aprendeu a obedecer por aquilo que sofreu e, uma vez aperfeiçoado, tornou-se a fonte de eterna salvação para todos que lhe obedecem. 49 Sendo Jesus o nosso exemplo, nós os seus servos, seus seguidores, não poderíamos andar no crescimento do seu evangelho?

Porventura somos melhores que os outros para conservarmos tal prepotência de tudo querer fazer, levar às últimas consequências a nossa vontade, sem ter em consideração que há alguém que possui direitos semelhantes a nós – o próximo, e há quem todo direito tem e está acima de nós – Deus?

Voltemos ao evangelho e procuremos viver como Jesus aqui viveu, obedecendo a vontade do Pai. Que nosso viver diário seja vivido dominando a velha natureza pecaminosa, que nossa vontade esteja sob a vontade soberana de Deus e que a expressão de nossos lábios seja as palavras que Paulo falou: Fui crucificado com Cristo. Assim já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e que se entregou por mim. 50

Vamos propor a cruz para a nossa carne, morte para nossas inclinações ou paixões carnais, renuncia para nossa vontade, pois quem governa o seu espírito é melhor do que aquele que governa uma cidade. 51

Caminhemos a carreira cristã com este verdade esclarecedora de que a essência da perfeita vontade reside na negação de nós mesmos e este grande exemplo nos foi deixado por Jesus que cumpriu completamente a vontade de Deus.

 

REF.: 1 Hb. 11:3 2 2Gn. 1:11, 20-22 3 Gn. 1:26 4 4Idem.5 Gn. 1:316 Rm. 12:27 Gn. 1:268 Gn. 2:28

9 Gn. 1:28, 2:1510 Gn. 2;1611 Gn. 2:1712 Gn. 3:513 Gn. 3:1714 Gn. 3:16-19

15 Epicuro (341 a.C – 270 a.C.) – seus argumentos para provar a veracidade absoluta de todas as sensações são: 1) A sensação é uma alteração e, em consequência, é produzida por alguma coisa da qual o efeito é correspondente e adequado. 2) A sensação é objetiva no sentido que ela reflete a realidade. 3) A sensação é a-racional. O prazer e a dor são importantes para distinguir o verdadeiro do falso, o ser do não ser; é um critério axiológico para distinguir o bem do mal. Então vamos viver dirigidos por tudo que nos dá sensação. Zenão (332 a.C – 262 a.C), pai do estoicismo repugnava a ideia de que o bem no homem tinha que ser identificada com o prazer sensitivo. Eis porque a sua filosofia era identificada com a apatia, ou seja, o tolhimento de qualquer paixão. Como dizia Zenão “elas têm que ser destruídas e extirpadas totalmente”. O verdadeiro bem é a virtude e o mal é identificado como vício. Finalmente, ser feliz é viver apático ou indiferente àquilo que se chega aos homens através das sensações ou daquilo que lhe dá prazer. Porque para os Estoicos quando se vive só por “sentir” também se postula um “assentir”, isto é consentir ou aprovar. REALE, Giovanni. História da Filosofia Vol I. Paulus, 1999. São Paulo. Pg. 237-256

 16 Gn. 4:7 17 Gn. 11:4 18 Gn. 13:719 Gn. 18:10 20 1Gn. 19:1-21 21 Rm. 3:2322 Jz. 21:2523 II Sm. 23;1 24 II Sm. 24:1-11 25 Jr. 17:5 26 I Jo. 2:1627 Tg; 1: 14,1528 Rm. 1:3029 Rm. 7:15-2030 Gn. 3:1531Jo. 3:1632Jr. 31:3

 33 O termo é grego; é composto por duas palavras: Théos (Deus) e Phanei (Aparecer). Teofania, portanto descreve alguma manifestação visível de Deus antes da encarnação de Jesus. Ex: Gn. 16:7-14 / 21:17-19 / Ex. 3:1-6, etc.

 34Hb. 1:135Gl. 4:436I Co. 15:4537Idem 15: 47,4838 Sl. 8:539Cl. 2:940 Fl. 2:641 Hb. 4:1542 Mt. 4:1-1143 Mt. 26;42 / Jo. 6:3844Mt. 3:1745Lc. 9:2346Mt. 5; 39-4447Idem 5:4548 Idem 5:-1-1149 Hb. 5:8, 950 Gl. 2:2051 Pv. 16:32

 

Marister Prado

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